Curadoria

RESENHAS – Texto Crítico de Tatiane de Assis

A multiplicação do centros, centro, oeste

Durante uma visita em 2019 ao Elefante Cultural, espaço autônomo de arte contemporânea que funcionava em Brasília, tive uma conversa muito proveitosa com a curadora associada de lá, a Cinara Barbosa, que agora toca o projeto BSB Plano das Artes. “As pessoas não sabem, mas nos anos 1980, o cenário de arte de Goiânia era muito pulsante.”, me contou ela.

Eu nasci em Goiânia, que é a capital do estado de Goiás, no final da década de 1980 e nunca tinha ouvido falar desse circuito fervilhante. Fiquei inquieta, mas guardei a informação curiosa. Naquela época, outras prioridades da vida adulta me atropelaram.

Em 2020, quando fui ministrar um curso de acompanhamento de projetos para artistas da região centro-oeste, decidi seguir a pista que Cinara havia me dado um ano antes. Na internet mesmo, encontrei um artigo de autoria de Armando de Aguiar Guedes Coelho, hoje doutor em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais, da Universidade Federal de Goiás (UFG).

O título do texto é “Casa Grande Galeria de Arte: A Engrenagem de um Mercado de Arte Emergente”. A priori, me chamou atenção o nome da galeria: Casa Grande. Se intencional ou não, a associação com o clássico de Gilberto Freyre – Casa Grande & Senzala – causaria desconforto legítimo e não passaria batido nos tempos atuais. Ainda mais em um ano em que vimos uma mulher branca chicotear homens negros por eles ocuparem um espaço na cidade, que ela acreditava que eles não deveriam estar.

Depois, outra surpresa: sem rodeios, Armando afirma já no início do artigo: “Podemos afirmar que existiu um mercado de arte em Goiânia nos anos 1980. Os artistas locais viviam de arte. Galerias se mantinham com vendas de obras de artistas locais, e marchands ganhavam dinheiro descobrindo novos colecionadores. O circuito de arte não dependia do Estado e se criou um grupo de jornalistas/críticos especialistas em arte goiana. O mercado de arte local possuía sua própria dinâmica, diferente do Rio de Janeiro e de São Paulo.”

Encontrar aquela informação foi muito importante. Em março de 2014, eu havia me mudado de Goiânia para São Paulo. O movimento foi um desdobramento do Curso Abril de Jornalismo (CAJ), que eu havia participado em janeiro daquele mesmo ano. Eu não havia conseguido qualquer vaga de emprego na editora Abril, mas decidi ir viver na capital paulista.

Fiquei três meses desempregada, um período que não parecia ter fim, mesclava a melancolia com o desespero, e por fim, vinha a esperança de que ia dar certo. Surgiu então a chance de trabalhar em um portal de cultura, chamado O Beijo, que àquela época focava seu conteúdo em artes visuais. Eu deveria escrever matérias sobre exposições e artistas.

Diferente de muitos colegas que fizeram o CAJ, eu não tinha o costume de viajar para São Paulo com frequência e também não tinha tido até então a oportunidade de conhecer  a Europa e seus famosos museus. Mas como a necessidade de ter um emprego e grana era mais importante, deixei essa sensação de “não sou boa o suficiente” de lado, fui lá e fiz um texto-teste sobre as obras de uma artista – uma amiga pintora de Belo Horizonte. Tcharam! Consegui a vaga.

Porém, eu ainda estava naquela toada, vou aprender muito, porque de onde venho, não tive muito acesso à museus, exposições e tralalá. Ou seja, não tenho conhecimento que dizem que devo ter. O artigo de Armando, então, é o começo de um estalo para eu rever a minha trajetória e a história da minha cidade. Ele diz assim: “Em 1980 existiam menos de cinco galerias de arte na cidade de Goiânia, mas haviam outros espaços (de fomento às artes) como Centro Municipal de Cultura, num antigo prédio no Bosque dos Buritis, no Setor Oeste (bairro nobre na cidade)”.

Esses primeiros estabelecimentos, que ele cita, seriam:

1- a galeria Alba, de 1963, que em 1965, passou a se chamar galeria Azul, criada pela pintora Maria Guilhermina;

2- a Arte Goiana Galeria, fundada pelo artista Washington Honorato Rodrigues em 1975;

3- a LBP Galeria, do jornalista Lourival Batista Pereira;

4- a Paulo Araújo Galeria, que funcionava dentro de uma livraria importante;

5- a Casa Grande Galeria, fundada em 1975, cujo modelo de operação e negócios, aliava a realização de exposições de nomes locais (Amaury Menezes, Cleber Gouveia, Siron Franco e D.J. Oliveira) e nacionais (Walter Lewy, Cláudio Tozzi, Newton Resende, Ademir Martins, Marília Kranz, Ascânio M.M.).

Em um segundo artigo do mesmo pesquisador, intitulado “A Importância do Jornal na Configuração do Cenário Artístico da cidade de Goiânia”, soube, por meio da referência a uma matéria jornalística, como se comportavam os colecionadores de arte na cidade.

“Nesta cidade de clima ameno, a figura do especulador, aquele que adquire uma obra de arte como forma de investimento quase inexiste. Isso é bom, porque demonstra uma evolução cultural, em que a obra assume seu papel de agente histórico”, afirmou o artista Elder Rocha à jornalista Margareth Gomes, que escreveu a matéria “Campo Fértil”, que foi publicada no jornal O Popular, em 30 de maio de 1989.

Desconheço o clima ameno de Goiânia, ainda bem e felizmente o sol é constante por lá com intensidade. No mesmo artigo de Armando, a lista de estabelecimentos em Goiânia é complementada, fruto da análise de matérias no jornal O Popular, no período de 1980 a 1989.. São galerias, pontuais e de permanência continuada, e de formato variado. Depuro a listagem dele, com o cruzamento de informações colhidas em conversas com os artistas Divino Sobral e Leonam Nogueira.

1- Galeria de Arte Jaó; 2- Galeria Frei Nazareno Confaloni (espaço público); 3- Arte Antiga Galeria (que depois vira Galeria Potrich); 4- Centro Mutiarte Galeria; 5- Arroz de Neon (que funcionava dentro de um bar); 6- Época Galeria de Arte; 7- Galeria de Arte Bauhaus; 8- Vanda Pinheiro Gabinete de Arte; 9- Giotto Galeria de Arte; 10- Félix Galeria de Artes; 11- Atelier 104 Galeria de Arte; 12- Veiga Valle Galeria; 13- Galeria Vila Boa e 14- Galeria Chá de Cadeira (que funciona dentro de uma loja de móveis).

Ainda são citados 28 espaços culturais operando nessa mesma época. Destaco entre eles: a Galeria do Teatro Goiânia, o Sesc e a Escola de Artes Veiga Valle.

É muita coisa, não? Ainda mais considerando que Goiânia é novinha, tem apenas 89 anos. Para comparação, a cidade de Salvador tem 474 anos e São Paulo, 469. O Rio de Janeiro fez 458 anos em 2023 e Belém completou 407 também neste ano. Goiânia foi planejada e fundada em 1933. Brasília veio depois, na mesma verve de Marcha para O Oeste, e foi inaugurada em 1960.

Mesmo com a descoberta das galerias e espaços culturais, fiquei intrigada com o meu desconhecimento sobre a cena de arte goianiense e continuei a procurar informações. Soube que era a classe média alta e as elites que frequentavam os espaços culturais e compravam obras nas galerias de arte. Com o fracasso do plano econômico, criado pelo presidente Fernando Collor, no final dos anos 1980, toda essa ebulição do circuito goianiense entra em decadência.

Ainda se comenta sobre a produção da cidade, por meio de nomes como Pitágoras, Marcelo Solá, Rodrigo Godá e Zé César. Mas se volta a se falar com eloquência dessa cena, agora, no fim da segunda década dos anos 2000, porque a produção do artista Dalton Paula, que nasceu em Brasília, mas cresceu lá, ganhou os holofotes do circuito de arte em São Paulo, Rio de Janeiro e Nova York. Chique.

Em 2020, junto à sua companheira, a professora e pesquisadora do campo audiovisual Ceiça Ferreira, inauguraram uma espécie de centro cultural, o Sertão Negro, que conta com aulas de capoeira dada pelo Mestre Guaraná, com lições de cerâmica ministrada pela artista e professora Anahy Jorge e sessões de cinema, no cineclube, Maria Grampinho.

Às vezes, a gente vicia em ler a cena de uma cidade que não é muito falada por meio de uma pessoa só. Mas há sempre tempo de não cair nessa armadilha. Assim, Goiânia é também o artista e crítico de arte Divino Sobral, que me ensina a cada encontro sobre o passado e presente colonial da cidade; o coletivo de performance Grupo Empreza, que veste a bandeira da goianidade há mais de 20 anos; o artista Gilson Plano, que faz seus pássaros de pedra com cores de rio voarem e desafia o mercado que parece acreditar que artistas afrodescendentes somente trabalham com pintura figurativa. Goiânia também são as lembranças de quem encontra na cidade um lugar de escolha, como as artistas Lucélia Maciel e Manuela Costa, que, cada uma, ao seu modo, deixam seus sonhos transbordarem em suas produções. É o Helô Sanvoy, a fazer renda cotidiana com as notícias de jornais e a entrelaçar vidro e couro.

Tem também os palhaços de circo melancólico da Ana Maranhão Izaac; os retratos de uma negritude orgulhosa e tão esperada do Rafael Vaz; as cenas meio cotidiano, meio invenção do Rustoff; as convulsões de imagens e palavras do Dakí e do Ricarjones; os estandartes do Humberto Carvalho; a produção a desafiar cidadãos do bem da Ambar Pictórica. E as fotos e performances da Sallisa Rosa a investigar o legado de populações originárias, tensionando o que pode ser chamado de identidade. Legado esse também olhado e cruzado com questões de gênero na produção de Sophia Pinheiro.

Provavelmente, e ainda bem, essa listagem não é completa e vai faltar nomes, a quem eu já me desculpo de antemão. Alguns nomes citados, é importante frisar, estão pelo mundo.

Tati, muito interessante, mas por qual motivo, você nos falou sobre tudo isso? Vocês lembram que lá no início do texto, eu contei que fui para São Paulo e tinha na cabeça, que eu vinha de uma cidade, que diferente da capital paulistana (ou carioca), não tinha um super roteiro de artes visuais? Pois é, saber sobre essa memória da cidade em que eu nasci me fez perguntar a quem interessa apagar a história do que não é dito centro?

E o que não é centro, podem ser as periferias de São Paulo ou do Rio, ou de qualquer outras cidades. Em Goiânia, as galerias estavam localizadas em bairros de elite, o que é um grande problema, vale dizer e merece outro texto para gente mergulhar nas produções também produzidas no que se convencionou chamar borda.

Ainda sobre uma posição de protagonismo, o que não é centro também pode ser todo o Brasil, que não é litoral e não foi capital.  É o sertão, que se move, a bem do preconceito de quem fala. Podem ser as regiões centro-oeste, nordeste e norte do nosso país.

Companheiro dessa amnésia sobre cenários outros, também é a noção do descobridor, do revitalizador. “A gente (de fora) veio aqui para Goiânia e mudou o cenário de arte local”. “A gente veio aqui para o Complexo da Maré e trouxe um novo pensamento”. Será mesmo? Essa postura, vale dizer, não é novidade e nem de longe se pretende partilha. Esteve presente na invasão do Brasil, na colonização da colonização, por meio das bandeiras, e por aí segue. Os deslocamentos são sempre proveitosos, ainda mais quando se colocam como um intercâmbio, pautado na equivalência.

Outro fiador do esquecimento, também é a ideia de que a gente precisa APENAS visitar museus e galerias de arte, ler livros, frequentar uma universidade, para ter uma bagagem. Se esse acesso for possível, ótimo, mas se não, como ocorre como a maior parte dos brasileiros, é preciso enunciar e sistematizar, como muitos já estão fazendo, uma formação de “gente como a gente”.

Nesse sentido, fiz um exercício e busquei então lembranças dos contatos que tinha tido com artes na minha infância. Meu pai não se formou em uma faculdade, mas foi produzindo, adquirindo e compartilhando conhecimento do jeito que era possível. Ele comprava revistas variadas para se informar. Também comprava aquelas edições de livrinhos sobre grandes personalidades da história.

Recordo também observar a diagramação de um cd com uma coletânea de músicas da Rita Lee, que eu dançava até cansar quando chegava nas escolas. Também gostava das capas dos cds da Companhia do Pagode, tinham um quê de capa de revista.

No colégio, também lembro de visitar os ateliês do Amaury Menezes e do Siron Franco, pintores importantes de Goiânia. Nas aulas de artes da escola, lembro de ter tomado algumas lições básicas sobre pintura (clássica).

Eu era péssima em retratar paisagens, pessoas. Tinha uma briga com a danada da perspectiva, mas achava interessante o exercício de criar formas e combinar cores, de criar algo que não tivesse utilidade.

Mais tarde, já como crítica de arte, descobriria que essa noção de que “a arte acaba quando começa a função” é a base da arte moderna e que acaba por excluir populações sub-representadas, que praticam o crochê, o tricô, a tecelagem, a cestaria, a cerâmica e por aí vai.

Também nasceu em mim uma paixão súbita pelo artista cearense Leonilson, que produziu pinturas e bordados. Não tenho ideia de como eu conheci o trabalho dele, afinal, naquela época nunca tinha pisado em São Paulo. Cavucando, talvez minha ligação com o trabalho dele tinha a ver com os bordados. As técnicas manuais sempre estiveram presentes lá em casa. Minha avó faz bordado em Richelieu, minha mãe crochê e tricô. Acho que me sinto tão atraída pelas telas da pintora Beatriz Milhazes, porque a forma como ela combina as cores não me é estranha, me remete à minha casa.

Ainda tem os muros, como o grafite e a pixação me educaram visualmente! Até hoje, me hipnotizo com as letras de pixo, porque elas têm uma relação imensa com o corpo de quem as executa. Dá pra saber por elas se o pixador é alto, baixo, ágil ou mais comedido em seus movimentos. É puro gesto.

E não vou esquecer de citar… a natureza. Como eu aprendo sobre escultura olhando os troncos de árvores, sobre textura, olhando taturanas que aparecem pelo meu caminho. Os tênis pendurados em fios de energia me aproximam da arte contemporânea, que parece mais distante da gente, mas que quando se vence aquela sensação de “não estou entendendo nada”, os pensamentos começam a se encaixar. Daí você reconhece um material que vem do cotidiano e traz uma história. Muitas perguntas ainda ficam, mas não é assim também com a vida?

Com esse inventário de memórias fiado, pergunto de novo: a quem beneficia a crença de que a arte está somente nos museus, de que é uma campo impenetrável? E a quem interessa que a gente não reposicione e multiplique os centros? Como mais um esforço nesse projeto de diversidade, que vem sendo encampado há tempos, por muitas outras vozes, que vem antes de mim, espero que esse texto possa ser um ser um convite para que vocês conheçam o meu eixo: o centro, oeste.

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¹ Aparecem ainda no artigo as seguintes galerias: 1- Petite Gallery; 2- Galeria Bittar; 3- Engenho & Arte Galeria; 4- Oficina Galeria de Arte; 5- Carrossel; 5- Arte-Arte Galeria; 7- Astral-tonelogia Galeria de Arte; 8-Kuryala Sala de Artes; 9- Ipê Galeria de Arte e 10- Cora Coralina Galeria de Arte.